quinta-feira, 31 de outubro de 2013







no meio da escuridão aveludada trêmulo a respiração ofegante só pela boca calafrio que não acaba a eletricidade estalando nas pontas dos vinte dedos lençol inundado de suor o coração uma boiada estourando pra fora da porteira ossuda do peito ele murmura após morrer mais uma vez ou tipo isso
...
- tem certeza que você faz isso só com a boca?














terça-feira, 29 de outubro de 2013







Tinha uma conversa muito boa, tudo na medida.
Daí plantou-lhe um filho no bucho, um pé na bunda e sumiu com o carro que ela havia acabado de comprar.
Ninguém nunca mais ouviu falar.
Eu não quis dizer nada - que quando mulher apaixona se você fala alguma coisa já te chamam de ciumento e não sei mais o quê -, mas desde a primeira vez que botei os olhos nele já sabia que ia dar nisso ou coisa pior.
Não se confia num homem de sapatos tão limpos.






sexta-feira, 25 de outubro de 2013







Eu saía às três e pouco pra buscar a lenha e fazer o café dos homens e lá estava ela, sentada em cima do monte de terra na encruzilhada da estrada, brincando de boneca. Desde a primeira vez, eu nunca passei reto. Perguntava o que ela estava fazendo ali sozinha àquela hora.
Não me respondia.
Quando eu ia chegando mais perto, ela virava um cachorrinho branco e saía correndo no rumo do córrego, descendo na escuridão até sumir.
Era aquilo toda última quinta-feira do mês, desde que fora enterrada no cemitério que ficava no pasto abaixo.
Vai ver, não era eu que ela esperava.













quarta-feira, 23 de outubro de 2013






"Foram uns três ou quatro anos de loucura total", ele gostava de dizer quando tomava umas e outras, se gabando das festas de três dias seguidos no apartamento, da cheiração, da bebedeira, das orgias...
Três ou quatro anos de farra, de galinhagem, de putaria, isso ele poderia dizer.
De loucura, não.
Porque ninguém consegue olhar por mais de três ou quatro segundos nos olhos da loucura - a VERDADEIRA genocida obscena e devastadora loucura - e achar graça.
E esses três ou quatro segundos são suficientes pra te mudar para sempre.

















Ladrão era desde pequeno.
Assassino virou aos 16, depois que mudou pra cidade.
Despachou uns quatro até ser preso aos 25, e não por matar gente.
Barranqueiro inveterado, foi flagrado enrabando uma égua bem na praça central, coisa que nem cadeia dá. Mas aí já era procurado, uma coisa puxou a outra e sabe como é...
Antes não tivesse saído da roça.






terça-feira, 22 de outubro de 2013






Menina, você precisava de ver... Deu tanta pena... Uma bicicleta velha, coitado, toda entortada. Voltando do serviço, foi... Ficaram lá uns amendoins espalhados que ele tinha acabado de comprar naquele mercadinho que tem na esquina, sabe? Uns iogurtes também que deviam ser pros meninos, tadinhos...
E aquela sanguera...
O sapato lá longe...
Que mania que essa gente tem de perder sapato quando é atropelada, né?












- Cu?
- Como.






quarta-feira, 16 de outubro de 2013






Uma noite eles acordaram dentro de uma canoa, e só havia céu estrelado e água em volta. Flutuavam sem remos sobre um oceano represado em um anel de bronze.
Sem vento.
Sem margens até onde a vista alcançava.
Nada vivia no ar quente e nada vivia na água.
Então eles decidiram que iriam se alimentar um do outro, até que as feridas mútuas se tornassem terríveis demais para cicatrizar.










- Oi... você vem?
- Vou.
- É que deu um problema.
- Qual?
- Fiquei menstruada.
- Eu não ligo.
- Ai que bom! Meus peitos ficam tão mais bonitos assim, inchados...





sexta-feira, 11 de outubro de 2013






Tem baile toda noite no salão nobre do museu, aquele salão grandão. Segunda a segunda.
Aqui da guarita dá pra ouvir os sapatos das moças plec plec plec rodando até pouco antes do sol raiar.
A gente só não escuta a música, mas os passos... direitinho, plec plec plec.
Hora certa de começar não tem não.
É sempre umas três, quatro horas depois que o último vivo vai embora.
E aí fica só eu e o baile lá dentro.
...
Um dia queria ouvir a música também.





quarta-feira, 9 de outubro de 2013






Não se encaixava, sempre deslocado, incompreendido, incabível.
Foi encontrado afogado em dois litros de cachaça Taruana na casa que herdou do pai, abraçado a uns livros lá.
Até onde sei, morreu orgulhoso no vômito, mártir dos próprios delírios.
Rebelde, desajustado, marginal, ele julgava.
Nunca lhe ocorrera que não passava de um chato do caralho.











Ficcionista limitado, mentia melhor na terceira pessoa.





terça-feira, 8 de outubro de 2013






Com todo respeito, doutor, só Deus pode me julgar. Perante os ensinamentos Dele, sou um homem inocente. Ou um cidadão de bem não tem direito de salvar a própria vida? Está lá no Velho Testamento, pode procurar, Juízes, capítulo 16, versículo 16:
- Importunando-o o tempo todo, ela o cansava dia após dia, ficando ele a ponto de morrer.
E morreu mesmo, cabeça raspada e olhos furados.
Então, doutor, era ela ou eu.
...
Agora o senhor vê o que faz aí.











segunda-feira, 7 de outubro de 2013






Ela ia descendo a rua em direção ao trabalho, um metro e oitenta de mulher, a pele branca feito leite Parmalat, uns olhos grandes, pretos que nem as tampinhas antigas de Caracu, um sorrisão que te engolia - e o sumiço valia a pena, só de deslizar por cima daquela língua pra dentro do esquecimento.
O verdureiro, em sua bicicleta de carga, não resistiu:
- Ô bunda feia, heim minha filha!






quinta-feira, 3 de outubro de 2013






- Ouça bem: toda palavra aprisiona. Várias delas juntas, porém, podem libertar.
...
- Hm, saquei. Que nem o dinheiro.