sábado, 28 de dezembro de 2013







A gente brincava em casarão abandonado cheio de merda de pombo, nadava em rio infestado de Schistossoma mansoni, comia fruta mordida por morcego, bebia leite direto da teta da vaca e comia pão com gordura de porco.
Só não adoecia por ignorância.







quinta-feira, 26 de dezembro de 2013






Quando eu vi o tamanho da moça já não havia mais meio de voltar.
Olhando lá do fundo da vila, contra a luz da rua, sua silhueta cobria metade do portão.
Acionei o botão, ela entrou, devia pesar uns 120 quilos, eu já tinha uma garrafa de vinho na cabeça, nós rolamos pelo tapete empoeirado, pelo sofá, pelo colchão, uma duas três vezes e nunca mais eu acreditei naquela lenda de que só mulher de canela fina é que é boa de cama.







segunda-feira, 23 de dezembro de 2013







Era botox lipo lifting laser ioga silicone pilates personal trainer colágeno fios de ouro grupo de corrida bike mas nada estava tão em forma quanto a língua: só não percebia é que agora já não falava mal das outras, mas das filhas das outras.






terça-feira, 10 de dezembro de 2013







Hoje eu me lembrei da Alice. Fazia tempo que não pensava nela. Há anos nem o cheiro de couro molhado pela chuva a resgatava das cavernas onde se escondem as minhas memórias.
Na verdade, não me lembrei dela, eu acho.
Me lembrei do medo que ela tinha de uma doença degenerativa nos tendões do braço, não sei se o esquerdo ou o direito. O medo que ela tinha de sua mão ir definhando, retorcendo e secando até virar uma garra de ave de rapina empalhada.
É. Não me lembrei dela.
Me lembrei do medo dela.
Como se fosse
um medo
meu.






sábado, 7 de dezembro de 2013

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013







Clarice costumava ter uma queda por garçonetes. Mas aí elas começaram a querer ser chamadas de bartenders, hostess, doors e o tesão foi acabando, até que Clarice se casou com um dentista e foi morar em Anápolis. Têm três filhos agora. Quando ela vem, saímos para beber e seus olhos às vezes fogem da gente, vagando entre as mesas e atrás dos balcões em busca de alguma coisa que não está mais lá.






segunda-feira, 2 de dezembro de 2013







Tomou uma pinga.
Comeu dois doces.
Fumou três cigarros.
Fez quatro gols.
Levou cinco facadas.
Morreu de chuteiras.






sexta-feira, 22 de novembro de 2013







Chegou da capineira cambaleando, cuspindo sangue no poeirão do terreiro.
O melado escorria das gengivas e começou a descer do nariz e do canto dos olhos. Uma tremedeira doida.
No hospital, oito injeções das bitelas, quatro delas no lombo.
Foi embora pra casa no mesmo dia.
No quartinho em que morava entre o chiqueiro e o paiol, um copo de pinga para aplacar a dor.
A jararaca não teve a mesma sorte: tá lá pendurada na cerca, a cabeça esmigalhada pelo mesmo pé que embestou de picar.






quarta-feira, 20 de novembro de 2013







Massageou.
Friccionou.
Pediu várias vezes que aplicassem nela a técnica da sucção.
Mas nem por um caralho o grelo virava pinto.







terça-feira, 19 de novembro de 2013






Por volta de 1985 éramos muito jovens, muito domesticados para brincar longe da beira-rio. Então os outros meninos é que vinham até nós jogar bola, empinar pipa, bater pique.
Na primeira vez que subimos o morro na companhia de um daqueles que moravam lá, um outro, surpreso, nos recepcionou de longe. 
Sem bola. 
Sem pipa. 
Sem pique.
- Tão longe de casa, heim.





 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013






- Há uma tensão entre nós dois, ele disse.
E ela, em irrepreensível análise morfológica, despindo o eufemismo covarde, na lata:
- Tem N sobrando no seu substantivo.







terça-feira, 12 de novembro de 2013






Francisco, preto, pobre, porteiro de garagem na Calle Piedras, fala português melhor que a maioria dos porteiros de garagem do Rio de Janeiro, torce pelo Peñarol (no Brasil é santista) e sabe tudo que rola na zona portuária. Onde ir e principalmente onde não ir depois que o sol se põe.
Alex, gay, pobre, host de um hotel boutique na Calle Piedras, não sabe onde ficam os museus da Ciudad Vieja nem de um lugar onde se possa ver uma banda de rock tocar, mesmo com o "Mapa turístico de la ciudad de Montevideo" na prateleira atrás de sua cabeça oca.






segunda-feira, 11 de novembro de 2013






Trajano dirige o carro do jornal.
Mas queria mesmo é ser presidente.
Se eleito fosse, mudaria o natal e o ano novo para o fim de junho.
E venderia a Amazônia para os Estados Unidos, levaria toda a população de lá para o Piauí e fundaria uma zona franca na caatinga para produzir guarda-chuvas.
E venderia tudo para os americanos.








sábado, 9 de novembro de 2013






Na certeza de que o ofendia, berrou ao mesmo tempo em que espatifava o cinzeiro - cheio - contra a porta que ele fechava atrás de si:
- ... e você tá parecendo um marinheiro com esse monte de tatuagem preta!!!!
Para ele, cabo reservista de segunda categoria nos cafundós de Minas Gerais, que só tinha visto o mar uma vez na vida durante uma semana santa em Piúma, não poderia haver ironia mais elogiosa.






terça-feira, 5 de novembro de 2013






Começou com um negócio de só poder namorar embaixo do chuveiro.
Depois garrou me tapar a boca, que era pra eu não falar aquelas coisas que de vez em quando escapole na hora do bem bão.
Aí quando falou que ia pro Paraná virar padre, eu nem assustei.
Agora, arrancar a pele inteirinha com palha de aço lá naquela lonjura... isso eu nem sonhava.
...
E aí, mantém o corte ou vamos ousar?







quinta-feira, 31 de outubro de 2013







no meio da escuridão aveludada trêmulo a respiração ofegante só pela boca calafrio que não acaba a eletricidade estalando nas pontas dos vinte dedos lençol inundado de suor o coração uma boiada estourando pra fora da porteira ossuda do peito ele murmura após morrer mais uma vez ou tipo isso
...
- tem certeza que você faz isso só com a boca?














terça-feira, 29 de outubro de 2013







Tinha uma conversa muito boa, tudo na medida.
Daí plantou-lhe um filho no bucho, um pé na bunda e sumiu com o carro que ela havia acabado de comprar.
Ninguém nunca mais ouviu falar.
Eu não quis dizer nada - que quando mulher apaixona se você fala alguma coisa já te chamam de ciumento e não sei mais o quê -, mas desde a primeira vez que botei os olhos nele já sabia que ia dar nisso ou coisa pior.
Não se confia num homem de sapatos tão limpos.






sexta-feira, 25 de outubro de 2013







Eu saía às três e pouco pra buscar a lenha e fazer o café dos homens e lá estava ela, sentada em cima do monte de terra na encruzilhada da estrada, brincando de boneca. Desde a primeira vez, eu nunca passei reto. Perguntava o que ela estava fazendo ali sozinha àquela hora.
Não me respondia.
Quando eu ia chegando mais perto, ela virava um cachorrinho branco e saía correndo no rumo do córrego, descendo na escuridão até sumir.
Era aquilo toda última quinta-feira do mês, desde que fora enterrada no cemitério que ficava no pasto abaixo.
Vai ver, não era eu que ela esperava.













quarta-feira, 23 de outubro de 2013






"Foram uns três ou quatro anos de loucura total", ele gostava de dizer quando tomava umas e outras, se gabando das festas de três dias seguidos no apartamento, da cheiração, da bebedeira, das orgias...
Três ou quatro anos de farra, de galinhagem, de putaria, isso ele poderia dizer.
De loucura, não.
Porque ninguém consegue olhar por mais de três ou quatro segundos nos olhos da loucura - a VERDADEIRA genocida obscena e devastadora loucura - e achar graça.
E esses três ou quatro segundos são suficientes pra te mudar para sempre.

















Ladrão era desde pequeno.
Assassino virou aos 16, depois que mudou pra cidade.
Despachou uns quatro até ser preso aos 25, e não por matar gente.
Barranqueiro inveterado, foi flagrado enrabando uma égua bem na praça central, coisa que nem cadeia dá. Mas aí já era procurado, uma coisa puxou a outra e sabe como é...
Antes não tivesse saído da roça.






terça-feira, 22 de outubro de 2013






Menina, você precisava de ver... Deu tanta pena... Uma bicicleta velha, coitado, toda entortada. Voltando do serviço, foi... Ficaram lá uns amendoins espalhados que ele tinha acabado de comprar naquele mercadinho que tem na esquina, sabe? Uns iogurtes também que deviam ser pros meninos, tadinhos...
E aquela sanguera...
O sapato lá longe...
Que mania que essa gente tem de perder sapato quando é atropelada, né?












- Cu?
- Como.






quarta-feira, 16 de outubro de 2013






Uma noite eles acordaram dentro de uma canoa, e só havia céu estrelado e água em volta. Flutuavam sem remos sobre um oceano represado em um anel de bronze.
Sem vento.
Sem margens até onde a vista alcançava.
Nada vivia no ar quente e nada vivia na água.
Então eles decidiram que iriam se alimentar um do outro, até que as feridas mútuas se tornassem terríveis demais para cicatrizar.










- Oi... você vem?
- Vou.
- É que deu um problema.
- Qual?
- Fiquei menstruada.
- Eu não ligo.
- Ai que bom! Meus peitos ficam tão mais bonitos assim, inchados...





sexta-feira, 11 de outubro de 2013






Tem baile toda noite no salão nobre do museu, aquele salão grandão. Segunda a segunda.
Aqui da guarita dá pra ouvir os sapatos das moças plec plec plec rodando até pouco antes do sol raiar.
A gente só não escuta a música, mas os passos... direitinho, plec plec plec.
Hora certa de começar não tem não.
É sempre umas três, quatro horas depois que o último vivo vai embora.
E aí fica só eu e o baile lá dentro.
...
Um dia queria ouvir a música também.





quarta-feira, 9 de outubro de 2013






Não se encaixava, sempre deslocado, incompreendido, incabível.
Foi encontrado afogado em dois litros de cachaça Taruana na casa que herdou do pai, abraçado a uns livros lá.
Até onde sei, morreu orgulhoso no vômito, mártir dos próprios delírios.
Rebelde, desajustado, marginal, ele julgava.
Nunca lhe ocorrera que não passava de um chato do caralho.











Ficcionista limitado, mentia melhor na terceira pessoa.





terça-feira, 8 de outubro de 2013






Com todo respeito, doutor, só Deus pode me julgar. Perante os ensinamentos Dele, sou um homem inocente. Ou um cidadão de bem não tem direito de salvar a própria vida? Está lá no Velho Testamento, pode procurar, Juízes, capítulo 16, versículo 16:
- Importunando-o o tempo todo, ela o cansava dia após dia, ficando ele a ponto de morrer.
E morreu mesmo, cabeça raspada e olhos furados.
Então, doutor, era ela ou eu.
...
Agora o senhor vê o que faz aí.











segunda-feira, 7 de outubro de 2013






Ela ia descendo a rua em direção ao trabalho, um metro e oitenta de mulher, a pele branca feito leite Parmalat, uns olhos grandes, pretos que nem as tampinhas antigas de Caracu, um sorrisão que te engolia - e o sumiço valia a pena, só de deslizar por cima daquela língua pra dentro do esquecimento.
O verdureiro, em sua bicicleta de carga, não resistiu:
- Ô bunda feia, heim minha filha!






quinta-feira, 3 de outubro de 2013






- Ouça bem: toda palavra aprisiona. Várias delas juntas, porém, podem libertar.
...
- Hm, saquei. Que nem o dinheiro.






segunda-feira, 30 de setembro de 2013






'Se não tá bom, passa no DP e pede as contas.'
'Diminui esse ar-condicionado.'
'Maior corno viúvo da cidade inteira.'
'Aumenta esse ar-condicionado.'
'Esse ano não dá não, pai. Vamo ver ano que vem.'
Isso tudo retumbando na cabeça enquanto ele virava lentamente o volante pra esquerda, explodindo o ônibus e seus 48 passageiros contra um caminhão cegonha na BR-040.

O pessoal acha que ele cochilou.






quarta-feira, 25 de setembro de 2013






Também, esperar o que dum sujeito de nome Feio?
Fédaputa trabalhou quatro dias e já me levou na Junta.
Mas deixa.
O que é dele tá guardado, enrolado em jornal embaixo do banco da Brasília.
E carregado.






terça-feira, 24 de setembro de 2013






Agora a vida parecia simples.
Tudo de que sempre precisara fora alguém que a levasse para passear.

De preferência em Paris.






segunda-feira, 23 de setembro de 2013






era 1994 e as boas-vindas da pequena e relapsa cidade grande só foram dadas no domingo à noite

era preta de pele russa e calcanhares rachados

mais com os olhos amarelos que com a boca semicerrada, murmurou de passagem:

---

- moço, quer me comer?












Os peitos, meio muchibinhas.
Mas ainda respondiam a estímulos.
Para os dois desgraçados, era o que importava.





quarta-feira, 18 de setembro de 2013






Aí viu que absolutamente toda mulher queria ser comida.
As magras.
As chefes.
As gordas.
As feias.
As faxineiras.
As bonitas.
As tetraplégicas.
As putas.
As lésbicas.
Só não queriam é ser comidas por ele.









Seu Rosário já tinha morrido há mais de mês.
Mesmo assim a desgraça do galo continuava a esganiçar bem no meio da noite.
Desorientado do cacete.










À minha direita um aperta seu bagulho; à minha esquerda um outro estica sua taturana branca sobre o cartão de crédito; e eu, impávido monte de osso, maçã na boca, mijo antes que o estrondoso mi bemol marque o início de mais um fim de tudo.





quarta-feira, 11 de setembro de 2013






Primeiro ele enfiava o punhal no suvaco do bicho.
Depois aparava o sangue com uma caneca de esmalte.
Aí se levantava e bebia tudo de uma veizada só, ainda quente.
Então olhava pra nós, os olhos verdes faiscando, a dentadura arreganhada e rubra, o bigode escarlate-suíno, melado, gotejando.

E a gente achava uma graça danada.





terça-feira, 10 de setembro de 2013






Com Verônica era um lance sempre impressionista, furioso, fugidio, esparramado.
Géssica era outra parada. Mais renascentista. Uma retomada dos valores clássicos. 
Boa menina.
Não derramava uma gota.






segunda-feira, 9 de setembro de 2013






um dia sonhou que cada palavra tinha um recheio


e teve que quebrar uma por uma para saber o que havia lá dentro










Agora caminhávamos ali à beira do rio, dois estranhos apartados por um silêncio constrangido, lábios cerrados, bocas secas (embora ela conhecesse como ninguém o sabor daquilo que meu corpo produzia de mais puro).





quinta-feira, 5 de setembro de 2013






¡R I I I N G, R I I I N G!

- ¡Hola!
- Hola, soy yo.
- Ah, ¿no te he dicho que dejes de llamarme?
- Sólo quiero que escuches una última cosa antes de que te vayas de Zaragoza.
-... Bueno, ¿qué?


¡ B A N G !


Com o auxílio luxuoso de Joana Gonçalves





quarta-feira, 4 de setembro de 2013






O problema de matar criança ele resolveu depois que o negócio engrenou. A fama correu e ele começou a cobrar por quilo, então não valia a pena pegar o serviço.
E nem era porque não conseguia puxar o gatilho, que profissional igual aquele ali eu nunca tinha visto, não tremia um nada.
O negócio era depois.
Diz que dava nele uma gastura que não passava nem com meilitro de leite de magnésia.





terça-feira, 3 de setembro de 2013






Foi ali, fumando um cigarro no balanço do parquinho do restaurante, que a ideia lhe atravessou o cérebro deteriorado como um estilhaço de parabrisa.
Teria se poupado de metade das encrencas se tivesse batido mais punhetas.





sexta-feira, 30 de agosto de 2013






De boca em boca, encontrara mulheres que compartilhariam dores e gozos e risos e lágrimas e aflições e mesmo outros corpos. Mas ainda não estivera com aquela única capaz de dividir o silêncio.





quinta-feira, 29 de agosto de 2013






Um, provecto devogado semicatólico.
- Você vê, é umbanda, hinduísmo, judaísmo, cristianismo, taoísmo, candomblé, islamismo, espiritismo, budismo...
Outro, representante de vendas de uma fábrica de móveis tubulares.
- Vá pro caralho, Generoso. Bundismo é a maior religião do Brasil, graças a bundões como você e a bundões tipo aquele ali da Edilamar, ó só que beleza.





terça-feira, 27 de agosto de 2013




Não é que não gostasse de ser um espírito livre, vivendo em comunhão com a natureza e coisa e tal.
Gostava.
O problema era a saudade da desgraça do Chanel Nº5.




segunda-feira, 26 de agosto de 2013

sexta-feira, 23 de agosto de 2013






A peça foi pro saco.
Pelo menos naquela tarde.
Dissolveu-se junto com o guardanapo encharcado de cachaça. E nem era muita.
Depois de um longo tempo em silêncio, tamborilou os dedos sobre o tampo da mesa, chamou o garçom e botou uns trocados debaixo da garrafa.
- Se eu fosse canibal, só ia comer torresminho de buceta.

Para Tairone Vale








... um tradicionalista, enfim: de todos os pecados na prateleira, escolhi o original.



quinta-feira, 22 de agosto de 2013






Descruzou as pernas, deixou o livro sobre a mesa da cozinha e desceu para a garagem.
Ali começou a traçar o seu projeto de vida definitivo: mataria um poeta por dia até que seu deus estivesse saciado.